Se você pudesse conversar com alguém que já morreu, quem seria?

    Não é uma pergunta muito fácil de responder, mas acho que todo mundo já pensou nisso alguma vez. É aquele tipo de pergunta que te faz raciocinar de verdade, mastigar a resposta por um tempo. A maior parte das vezes você responde alguém da história, algum ícone dos tempos passados que você admira. Talvez seja o que eu escolheria, também: a ideia de tirar um dedo de prosa com Pedro II parece legal. Mas quero colocar uma restrição aqui, pra facilitar a escolha um pouco. Pense numa pessoa que você conhece, que já morreu. Qualquer pessoa, desde que você já tenha tido contato significante - trocar olhares no ônibus não conta, ou ver de longe num show.
    Dentro das condições que eu mesmo impus, tenho uma resposta imediata, mas precisarei contextualizá-la.

    Minha escolha é a senhora Eliani. Senhora porque era casada, mas era uma moça ainda. Eliani foi recepcionista na Fisk Centro de Ensino da minha cidade. Uma pessoa bem educada, acho que nos dois sentidos da palavra. Lembro que gostava de conversar com ela, e de discutir com ela. Isso porque ela era ateia. Eliani foi a primeira pessoa sem fé com quem eu tive contato. Eu, pequeno catecúmeno, achava isso um absurdo. A existência de Deus era óbvia, parecia ridículo negá-la. Qualquer coisa que eu achava na Internet sobre provas "definitivas" (entre dez aspas, como diria minha professora de História) da existência das coisas etéreas, eu trazia pra ela. Sempre era prontamente desmantelado. Um apóstata nunca chega à negação da fé sem raciocínio. Lembro até hoje de ter decorado a "massa exata de uma alma", só pra falar pra ela, e assim que falei levei uma resposta sucinta. "Isso não é um fato científico, esse número foi mais tarde atribuído à liberação de gases no momento da morte". Não é uma citação 100% exata, mas foi por aí.

    Alguns anos mais tarde e, olha só, o catequizado abandonou a Igreja que o acolheu. Foi um longo processo, claro, mas aconteceu. E, enquanto eu não iria contar pra minha mãe ou meu pai ainda, já pensava na ideia de contar pra Eliani. Porque ela, digamos assim, foi a má influência. Talvez tenha sido ela que plantou a sementinha da discórdia e deu no que deu. Mas isso não vem ao caso - ela era a única ateia que eu conhecia, e por isso pensava em conversar sobre isso com ela um dia.
    Encontrei ela um dia na farmácia do meu pai. Tivemos uma conversinha, ela mencionou que tinha comprado a tetralogia do Guia do Mochileiro das Galáxias pras crianças dela. Pedi o último livro emprestado, pois não tinha lido-o ainda. Marcamos que, à noite, iria na escola onde ela leciona para pegar o livro, e assim descobri que ela havia se tornado professora. Dito e feito, logo estava com um exemplar de "Até mais, e obrigado pelos peixes" em mãos. Todavia, nunca cheguei a ler o livro. Escola, depressão, uma série de fatores me afastou do mundo da leitura, e isso persiste um pouco até hoje. Paciência.

    Um mês depois, recebo a notícia trágica. Aparentemente, ela não era uma esposa muito fiel. Quando o marido ficou sabendo, tomou ação com as próprias mãos e matou-a a tiros, e por pouco não fez o mesmo com as crianças.

    Fiquei pensando na morte dela por um algum tempo. Nunca pude conversar com ela sobre Deus. Nunca pude devolver o livro pra ela, nem sei como meus pais o fizeram. E por isso a escolhi para responder a pergunta lá em cima. Pedir pra ela se estávamos certos, se não há nada do outro lado. Pedir pra ela se ela perdoa o marido. A opinião dela em várias coisas. Ela foi, quem sabe, minha primeira e única amizade adulta. Quando conversávamos, estávamos entre iguais. Até crianças gostam de respeito, sabe? Até hoje odeio ser tratado como criança, mesmo que ainda sinta que sou um fracasso enquanto jovem adulto/rescém desadolescente. Seria muito legal poder conversar com ela sobre um monte de coisas. Mas ela morreu.



    É isso. Ela morreu. E tudo aponta que estávamos certos, sim. Ela não vai voltar. Eu não vou voltar. Ninguém volta. Ninguém volta.
     Deus está morto.