O amor bateu na minha porta. Eu abri. Estranhei, no início, pois não éramos mais do que conhecidos. Ofereci uma cadeira na sala, fui pra cozinha fazer uma xícara de café. Tentei puxar conversa, mas fui remetido com um silêncio assombroso. Quando voltei pra sala, ninguém estava lá, a porta de casa aberta. Pausei, tomando o café que era pra outro, pensando no que acabara de se suceder. Olhei ao redor da sala, tudo parecia igual, mas algo de errado pairava sobre o cômodo. "Deve ter roubado alguma decoração da sala", pensei. Achei meio rude da minha parte assumir essas coisas dos outros, especialmente alguém que mal conhecia. "Quem sabe estava com pressa e não pôde avisar". O café estava muito amargo, foi difícil beber tudo.
Depois de uns meses, o tal do amor me chama pelo celular (eu nem sabia que ele tinha meu número). Pediu desculpas pelo ocorrido, disse que as circunstâncias não eram propícias. Decidi relevar, até porque não tinha encontrado nada concretamente errado até agora, e começamos a conversar. O amor é bom de papo, quando quer - raramente queria. Também decidi não querer. A conversa logo morreu. Lembro que, naquele dia, decidi abrir meu computador pra jogar alguma coisa, e tudo parecia tão diferente. Mas, claro, tudo estava igual. "Talvez quem mudou fui eu".
Esses dias, ele veio aqui em casa. Já tinha desistido de manter essa amizade desconfigurada, mas quando abri a porta quase não o reconheci. Ele estava tão mudado, tão diferente. O jeito de falar era hipnótico. Estava fazendo um pudim, ele se ofereceu pra ajudar, pois era seu doce predileto. Enquanto os ingredientes faziam sua mágica, o amor falava, e eu não abria a boca, feito um mestre e seu pupilo. O pudim ficou pronto. O amor falava, e eu não abria a boca. Quando comi o primeiro pedaço de pudim, senti um gosto estranho na boca. O pudim parecia todo errado, um gosto alcalino, mas amor parecia não perceber, devorando a sobremesa e falando. Falando, falando, não parava de falar, meu deus. Fui pro banheiro recompor meus pensamentos, enquanto escutava o barulho áspero de colheres batendo contra o potinho de metal. Uma náusea súbita me arrebatou, e logo me desfiz do pouco que comi. Senti o gosto de sangue na minha boca, e, enquanto olhava para os restos avermelhados que deixei na pia, pensava em como confrontar o culpado pelo meu predicamento. O barulho de colheres está mais alto, e a sobremesa está acabando. Eu ainda estou aqui, no banheiro, com a boca ensanguentada.