texto escrito para a primeira edição da EDIR webzine, com temática de horror - veja mais literatura desocupada aqui

Do soja

    Coitados dos banqueiros; dos magnatas; dos estadistas e de toda a velha política; dos homens empoleirados nos grandes centros financeiros dos rincões mais vultosos deste país. Eles que acreditam piamente, no topo de seus arranha-céus e e escritórios reluzentes, escondidos na selva de concreto, fazendo trocas sigilosas camufladas pela fumaça dos motoboys correndo pela Paulista, que os montantes que correm pelas suas mãos suadas é o combustível, motor e volante da vida dos habitantes brasileiros e suas contas bancárias. Não passam de tolos, desesperadamente se agarrando a uma mitologia do dinheiro que eles mesmos conceberam, em uma tentativa ainda mais tola de impedir que seus egos colapsem sob a bota preta do mundo corporativo. Não existe outra coisa neste país que puxe suas rédeas com força igual aos grãos de soja que crescem do chão sujo, cobrem o solo de um verde risonho, envesgam secos e partem em navios colossais em direção ao sem fim; ao menos, é o que dizia meu pai.

    Sou um menino do interior. Nasci e cresci onde o verde mistério das matas esconde imensidões pacíficas do amarelo das plantações, pontuados esparsamente por vilarejos e aglomerações de gente quieta, calejada e honesta. Onde o papo de negócios não são futuros, ações, greenfield, day trading, mas a simples indagação se a chuva vai emplacar ou arruinar a próxima colheita. Para essa gente, cada safra é uma aposta, um contrato quieto com o Senhor, nos cultos de domingo, que o milho vai brotar grande e gordo; que as vacas não serão magras, pois precisam dar leite; e principalmente, que “o soja” vai vingar mais uma vez. Afinal, se este pequeno grãozinho se enraizou por todos os tipos de fúndios do Brasil, não é por mera coincidência. Já minha família, nos meus tempos de guri, tinha uma fazendinha amigável pra chamar de sua; fazendo parte de uma cooperativa leiteira, ele, minha mãe e eu ajudávamos a cuidar do gado, tirar o leite de todo dia, levar para pastar e, quando ninguém estava por perto, contar lorotas e causos da vida sertaneja para seus ouvidinhos confidentes. Não só de leite vive o homem (nosso quintal, cercado por tábuas capengas, também contava com a presença de um modesto galinheiro), mas certamente, se o homem quisesse, poderia viver de seus subprodutos, que contribuíam um pouco mais para a renda apertada da família. Lembrando agora, o estômago aperta, sentindo falta da manteiga, nata, queijo sempre disponíveis, frescos e em abundância.

    Mas éramos a exceção. A maioria esmagadora dos moradores da nossa vila ou plantavam alguma coisa, ou trabalhavam para alguém que plantava; claro, geralmente soja. Algumas safras contrárias aqui e ali, pelo bem da rotação e outras místicas que ensinam os livros de agronomia, mas cresci acostumado a assistir o balançar em onda das plantas rasas, dedurando para todos que assistissem sua dança os esmos da brisa vespertina. A soja sempre pareceu (com o perdão dos taxonomistas) um bicho brincalhão. Como alguém que, pra compensar a baixa estatura, aprendeu a se defender afiando a língua. Sentado na beira da estrada de chão, afogado na poeira dos veículos que passavam quando-em-vez por aqueles caminhos antigos, já me encontrei perguntando se um dia aprenderia a falar a língua deste grão, que se remexia pra lá e pra cá, como eu fazia quando queria contar do meu dia na escola para mãezinha. O quanto dos tremeliques eram apenas trilhas de pressa do vento fresco do campo, nunca pude bem dizer, mas sempre imaginei que a rítmica escondia algo a mais. Do mesmo jeito, talvez, que o vento “fresco” não é mais tão fresco, mas esconde um vitriol químico disperso por máquinas que fogem a compreensão de um simples pecuarista familiar. E, por sinal, de quem são estas máquinas? A que mestre elas servem? Nunca me coube saber quem são os donos dos latifúndios ao redor da vila. Certamente, nunca passaram pela minha casa tomar um mate, ao menos não por mais que dez minutos. Esse tipo de gente não precisa colocar seu suor na terra pra fazer brotar; pagam outros para regar as plantas. Nem sei se estes capachos ainda suam, se hoje moldam o terreno imponentemente por trás de tratores fechados com ar condicionado. Será que entristece a soja saber que ninguém quer colhê-la com as próprias mãos? Deixarei aos agrônomos responderem esta pergunta. Eu só tirava leite e colhia ovos.

    Mas não foi assim por muito tempo. Eventualmente, o peso da idade começou a bater na porta de madeira do quarto dos meus pais, e, como todos sabemos, portas de madeira costumam fazer bastante barulho. Se você depende do seu corpo para tirar sustento, não espere conseguir comer para sempre. Um dos homens sem rosto, mais um suserano deste feudo agrícola, ofereceu ao meu pai uma quantia não-tão-modesta por grande parte do nosso terreno; praticamente, só nos restaria a casa e o galinheiro, que é mais fácil de cuidar do que uma estrebaria, pelo menos aos olhos de um casal de agricultores rapidamente se aproximando da terceira idade. Lembro que a oferta deixou minha mãe pensativa por um bom tempo. É nesses momentos pontuais da vida que você precisa sentar e planejar o seu futuro — e onde ele termina. Acho que a velha percebeu que tinha pouco futuro para planejar, então acabou por aceitar a oferta. Ela começou a costurar e fazer panos de prato para as comadres, e que bonitos panos fazia. Ornados com belas passagens da Bíblia e ainda mais belas tinturas de flores, mesas postas, querubins e todo tipo de coisa boa e bonita que uma senhora do interior gostaria de pendurar na haste de seu forno elétrico. Enquanto meu pai... bem, me escapa a memória. Nesse meio tempo, me mudei pra cidade grande e me matriculei no cursinho, já que o sonho de mãezinha era que eu fosse o primeiro “doutor letrado” da família. Não me incomodava, já que eu mesmo imaginava que, quando meu pai e mãe morressem, a soja ia levar tudo consigo.

    Talvez o leitor saiba como é puxada a rotina de um vestibulando. Talvez não tenha tido o azar de se prestar a participar desta instituição vil que se autodenomina “curso preparatório”. O fato é que, cada dia passado devorando exercícios de grandes faculdades, redecorando siglas, frases prontas e outros mnemônicos, era um dia que eu sentia minh’alma evaporar do corpo, deixar a mente no brutalismo pedagógico enquanto o coração flutuava para algum rincão com algum semblante de vida; geralmente, paisagens imaginadas de roça. Plantações, riachos, até chiqueiros serviam para fugir daquele ambiente inóspito e simplesmente espairecer. Mais feliz ficava eu, na verdade, quando conseguia tirar meus poucos dias de folga e visitar a coisa-em-si, a fazendinha amigável de meus pais. Espero que o leitor saiba como é ser recebido na casa de seus pais depois de um longo tempo de coração pesado. Ligações, videochamadas, nada se compara ao calento real de um abraço de pai, de um cheiro de mãe, todos os mimos, quitutes, a mordomia adjunta à saudade. Entre nós, considero esta a melhor parte. Mas toda visita sempre deixava um gosto amargo no fundo da língua: me doía o coração não poder cuidar mais das vaquinhas, bichanas mimosas, que foram carregadas para deus-sabe-onde; percebia o quanto meus pais sentiam falta da velha rotina, também. Cada vez que voltava para casa, sentava no quintal para tomar uma cuia e olhava para o horizonte agrário que se apresentava, sentia um toque gélido acariciando minha espinha. Era a soja. Se espreitava, chegava mais perto, como maré de meia noite. A cada visita, a cidade parecia menor; porque, realmente, estava ficando menor. Não ia sobreviver muito tempo. Alguém se mudava, alguém morria, às vezes sem nem explicação. Mas o diálogo entre eu e minha mãe era sempre o mesmo.

— Compraram o lote pra plantar soja?
— Imagine se não.

    Assim, a visão de antes, do verde mistério escondendo imensidões pacíficas de amarelo, se inverteu, desfigurado. Os verdes mistérios, encurralados por amarelos agora hostis, se veem despidos, desfeitos de seu mistério, isoladas entre alqueires mil do agrícola, que tudo desvenda, decifra e assimila. A situação era séria. É sempre fascinante ouvir nas redes sobre lugares abandonados, comunidades decadentes, a promessa da prosperidade honesta encarnada em mentira; mas é outra coisa completamente distinta encarar os olhos do espírito histórico enquanto, marchando com pressa vagarosa, assombrava o funeral da comunidade que você um dia pertenceu. É observar o mundo carcomer as beiradas do que te ancora ao chão. Ficar na casa de meus pais, onde eu me criei por tanto tempo, trazia ansiedade, um mau agouro, como invadir um cemitério à luz de lua cheia. E esta agonia era de múltiplas facetas. Não apenas sentia pesar o aspecto cadavérico da comunidade, como também passei a me sentir alheio a ela. As ruas por onde caminhei já não pareciam familiares; a casa dos meus pais mais parecia a casa de um outro amigo; cada canto da paisagem parecia, de forma ou de outra, expropriado de sua condição original, corrompido por um miasma de despertencimento. Já cheguei a confessar desta aflição para meus amigos do campus; todos me asseguravam que era um processo completamente normal, como um bezerrinho desmamando de sua mãe, o quero-quero que alça voo para nunca mais voltar. Queria muito que assim fosse, um mero reflexo da eterna construção do adulto, mas simplesmente não foi. A realidade crua, que tardou a cair para mim, para meu pai e para minha mãe, era que aquele lugar já não era nosso. Era da soja.

    No último dia que vi meus pais, já não havia mata. Havia o agro. Circulando o vilarinho como os fiéis cercando Jericó; uma onça-pintada espreitando uma capivara perdida. Me contaram que o homem sem rosto havia passado mais uma vez por casa, e fez outra oferta: desta vez, iria comprar tudo. A casa de painho, as dos vizinhos, a igreja, o armazém, tudo. Seu grande plano se concretizaria, enfim; onde tudo era mato, tudo seria soja. Invocando o desejo intrínseco do ser de galgar sua marca no mundo, removeria o rosto de toda a terra, transmudando-a num oceano de desertos indistintos. Para o azar do latifundiário, querendo ou não, meus pais não poderiam aceitar. O que fazer, depois de sair dali? Ir para a cidade? Nunca, eles detestavam a poeira preta e o chorume incrustado das calçadas. Comprar outro minifúndio? Não tem. Foi tudo comprado. Foi tudo virado em soja. O homem não desistiu, me disseram. Se tivesse rosto, estaria enrugado de frustração e desprezo, aumentando cada vez mais a oferta. Existem coisas que um homem sem rosto não poderia compreender; uma delas, que não havia dinheiro neste mundo que permitiria minha mãe de deixarem suas memórias, materializadas na pedreira e cimento das construções do vilarejo, morrerem sozinhas.

— Fique sabendo que, de jeito ou maneira, é melhor a senhoria ir fazendo as malas. Este terreno não lhes pertence mais. Pertence ao soja. Uma boa tarde.

    Assim partiu o crápula, numa promessa de violência que, embora pavorosamente descritiva das angústias que minha família vinha sentindo, teria dificuldade em abalar a rocha sólida sobre o qual se constrói o caráter de um homem do campo. O dia continuou normalmente. Tomamos nosso chimarrão. Discutimos sobre o tempo; a vida; o TCC; a soja. Esta criatura horrenda não só permeava o espaço de moradia da minha família, também fazia questão de se proliferar e infectar o próprio social, a convivência, os diálogos do dia a dia. Uma criança ciumenta e carente travestida de commodity. Estava certo que, naquela noite de domingo, iria visitar Morfeu não em campos elísios, mas em campos de soja. Que pesadelo seria. Mas um pesadelo ainda pior far-se-ia imanente.

    Nas longas horas da madrugada, de cama revirada, lençol desfeito e sono distante, o horizonte trazia um rugido. Uma vibração, gutural, de bestas de aço e alumínio. O ronco dos motores de vários tratores, vindos das plantações longínquas. De início, não fiz muito caso. Pensei que estivessem praticando outras druídicas agrônomas, aplicando seus vapores perversos, coisas de mundos distantes e pessoas sem face. Contudo, o ronco se expandia; saturava o quarto; se fazia presente, tremendo o chão da vila. Quando levantei-me e encarei a rua de terra, me deparei com uma cena surreal. Enormes tratores, das marcas mais finas que o agronegócio poderia financiar, carregando enormes aparatos tubulares conectados a enormes tanques de plástico. Pilotando-os, claro, homens de rosto. Não rostos familiares, diga-se, mas notavelmente cidadãos do mundo rural, trajando feições duras e severas. Sua marcha chacoalhava todo o ambiente, as próprias plantas e arbustos ao redor se tremendo como em reverência às criaturas do mundo moderno, que se impunham sobre a ordem natural. Eis que, sem avisos, sem advertência ou cuidado, as hastes metálicas lançaram seu ataque, cobrindo toda a área do vilarejo numa neblina densa, verde, fumegante, roubando a visão dos olhos e o ar dos pulmões. Não havia mais casa, ou quarto, ou vila, ou roça; apenas o verde cinzento, acusando vagos clarões de luz na direção dos faróis dos veículos. Com o fôlego que meu corpo me permitia, corri até o quarto dos meus pais; levantei-os à força de seus leitos, antes que se tornassem leitos de morte; nos apressamos para a frente da casa e;

    Nada. A fumaça toda estava quase dissipada. Os tratores continuavam, ao longe, com sua marcha fúnebre. Mas já estavam longe. O odor de química e veneno era pungente, mas, pelo que acusavam os olhos, o pior havia se passado. Ficamos perplexos, confusos, tentando compreender qual era o grande esquema das coisas, o plano por trás, o papel desta fumaça absurda na peça que nos foi pregada.

    Não tardou muito para que a verdade, com suas garras frias que desafiam qualquer disfarce, viesse à tona. Pois a verdade era a soja. Os pulverizadores misteriosos já haviam partido, mas o rugido continuava. A terra ainda tremendo, acusando à nossa pequena família semiacordada que não havia lugar para se esconder, não havia onde se proteger do perigo que sempre esteve conosco. Ao fundo, outra marcha se aproximava rapidamente. Meu maior pesadelo, o pesadelo de meus pais e de toda a comunidade, se acordava para o mundo material como uma grande tempestade verde, de milhares brotos de soja se emergindo do solo, tentáculos de celulose folhada assimilando tudo o que um dia ousou ser sua negação. Preenchiam o espaço com uma rapidez voraz, descontrolados em sua metástase. Do outro lado da rua, o armazém foi o primeiro a cair; não vimos ninguém correr para fora, apenas trêmulos gritos, enquanto as vinhas dos arbustos percorriam as vigas da pequena construção de madeira e, rompendo seus pilares, trouxe-a em destroços ao chão, para logo ser coberta totalmente em matagal raso e estéril. Uma velha senhora, amiga de mainha, apareceu na visão apocalíptica:

— Comadre, socorro! O meu filho! Lá dentro! Levaram o meu filho!

    Voz rouca, insuficiente, como quem não pode se permitir chorar, fugia com suas pernas finas com toda a força que seu corpo permitia. A onda folhosa, suprema em seu arrebatamento, vinculou-se ao pé da mulher. Seus gritos animalescos e perneios desesperados foram logo silenciados, estáticos, enquanto as vinhas adentravam seu esôfago, destruíam as conexões neurais, faziam do vivo seu sustento. O arrastar das plantas era quase pacífico, constante, sem diálogos, impedimentos, vinha numa calmaria de terra arrasada. A soja, faminta, sem escrúpulos, viria para levar minha família; se enraizar na terra onde pisei; se alimentar da cama onde dormi; tomar de mim tudo o que amei. Peguei meus pais pelo braço, enquanto o verde sublime mastigava o lugar que estimava como lar. Atrás de mim, o som de vidraça quebrando, copos, janelas, porta-retratos, madeira se partindo das paredes, as portas dos quartos, mesas e cadeiras onde se passavam os almoços em família, memórias devoradas, trituradas, assimiladas em grão, alimento para gado de corte, lucro para o reino dos sem face, memórias quais não tive o luxo de olhar para trás em dignidade e dar um último e solene adeus. Com a chave do carro em mãos, destrancando as portas do meu escape, minha única chance de levar para o mundo a minha história, um dos braços que levava comigo, subitamente, foi arrancado de meu alcance. Meu pai. O meu pai. Seu olhar era sereno, resoluto em aceitar o seu destino. Não gritou. Não gemeu de dor. Não fez um único som enquanto sua derme pipocava em brotos ensanguentados que se enraizavam profundamente em suas costas; seguiam o fluxo sanguíneo, se espalhando pelas artérias e veias de seu corpo, como uma lombriga rastejando no trato intestinal; seus dedos se contorciam, destroncavam, enquanto folhinhas esbranquiçadas alastravam-se das pontas, arrancando suas unhas de dentro para fora. Entrei no carro, minha mãe gritando, batendo nas portas acolchoadas. Arranhava, se contorcia, fazia de tudo para tentar derrubar a última barreira entre ela, seu amante e a besta. Eu também queria. Queria me jogar no verde. Talvez seria tudo um sonho ruim. Um sonho do qual acordaria, e tudo seria como era antes. Mas segui em frente. Era tudo o que me restava.

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    Depois de alguns dias, eu e minha mãe voltamos para a vila: precisávamos de algum fechamento, alguma continuação, saber o que restou. Não havia pedra sobre pedra. Onde, até o outro dia, haviam casas, lojinhas, uma igreja, havia apenas a soja, triunfante sobre tudo. Não haviam restos; destroços; corpos; objetos perdidos no meio da imensidão. Havia apenas monocultura; o amarelo da soja seca. Minha mãe sentou, incrédula, de olhos marejados, na beirada da rua. Deitou-se sobre o meu colo. Com um olhar perfurante, virou-se para mim.

— Filho… o seu pai… Você se lembra do nome dele?

    E então, o desespero irrompeu sobre o meu ser. Pensei que a resposta viria, óbvia e direta. Era o meu pai. O homem que me criou. E que eu não sabia nomear. O homem que, quando eu era um rapazote, brincava comigo no quintal. Daquela brincadeira, que eu não sei o nome. O homem que, no seu último aniversário, gravou um vídeo cantando... bom... cantando uma música... ou ele estava tocando o violão? Meu pai sabia tocar violão?

    Quanto mais tentava, desesperadamente, me agarrar aos momentos que passei com o meu pai, mais eles escorregavam dos arquivos da minha mente, dançando nos cantos periféricos da visão do terceiro olho. A soja, inconformada em tirar de mim não apenas as provas físicas da minha vivência, sequestrou-a do meu próprio ser. Minhas memórias, minha história, nada além de fertilizante para as hordas ruralistas.

    Hoje, encontrei minha mãe largada dentro do banheiro, com uma caixa vazia de ansiolíticos ninando em suas mãos. Velei-a sozinho, pois não temos família expandida no estado, e todos os seus amigos haviam sido levados pelo verde. Ela não aguentou esquecer do marido; da casa; dos amigos. Muita coisa da sua memória, a soja também levou. Buracos na sua alma, preenchidos por silagem. Estou escrevendo este relato para não me esquecer, também.

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    Ao passar de carro pela fronteira urbana, vi soja, infinita. Sua majestade agrícola expandindo para além da compreensão. Vindo para terminar seu trabalho. Continuar sua marcha. Se alguém estiver lendo isso, saiba que fugi para o litoral, onde a soja não pode avançar. Não seja bobo e fuja também. Não há o que fazer. Entenda que os herdeiros do trono do mundo não são os humanos; são as bestas de sua própria criação.