Ele me puxa pelo braço, e faz meu ombro esquerdo destroncar-se. Sua mão é quente, consigo sentir as digitais raspando sobre a superfície branca das minhas falanges. Eu lembro da primeira vez que fiz isso, o fantasma da alienação que me assombra mesmo agora. Meu olho esquerdo pulula, ameaça descolar da órbita, enquanto trocamos olhares fixos, arregalados, como uma cova aberta, uma sexta-feira à noite sem luar; na boca, um sorriso aberto, de criança, num jogo de negação e vontade. A mão sobe lentamente o meu torso, deixa um rastro elétrico de calor humano. A termodinâmica de um corpo quente; e um corpo frio. Na sua subida, os dedos bailam, pintando uma cena sufocante, de cimento bruto cobrindo nossos corpos nus. Ainda quente, acaricia as minhas bochechas que, envergonhadas, se assemelham a cascas de tangerina ao sol. Sim, como cimento, paira no ar o sorriso e a tensão. Em um suave movimento, uma força me puxa pelo occipital. Um momento de hesitação finge existir razão no que sempre foi puramente carnal. Com um sonoro pipocar, bala de festim, o olho esquerdo se desfaz das amarras cranianas, desbravando o mundo além da sua órbita. Aí, o que antes era um abraço tímido, passa a queimar em paixão, o amor do momento, sua língua traçando um vil caminho até o globo pendurado, como um cachorro de rua abocanhando um petisco antes de cair ao chão. Em poucos momentos, o olho é arrancado pelos seus dentes, devorado e engolido quase sem esforço dos molares. Cada junta da minha carcaça frágil grita, range ao limite, uma velha maquinaria tropeçando no peso da própria idade. A pressão do abraço faz meu diafragma quebradiço colapsar, perfura os pulmões. A dança ordinária entre nossas línguas se parte, deixando um só vazio onde antes haviam dois. Sinto outra mão deslizando, apalpando sem cerimônias os almadraques mais ao sul. A cada avanço, meu corpo desiste um pouco mais - aqui, sinto meus dedos se curvando em rigor mortis, como se fingindo punhos de briga. Suas presas ferozes se prendem ao meu lábio inferior, rasgado vorazmente, expondo dura a minha mandíbula, com incontáveis dentes enfileirados. Como um gavião, ele crava suas garras profundamente na carne que antes acariciava. Como um abutre, ele continua, rasante e implacável, bicando cada vez mais fundo meu rosto. Seus dentes roçam contra o osso exposto, como alguém riscando um bastão de giz com a unha. O som é horripilante, mas de minha boca já saíram coisas mais vis. Dois dedos, três, rasgam impacientes o meu esfíncter, me levantam do chão, me penduram como uma peça de carne. Seria a última vez que sentira minhas pernas. O lobo volta a traçar seu caminho de desejo, voltando-se aos meus ouvidos. Uma cartilagem frágil, que estala e se estilhaça. Há apenas ruído branco, mudo, enquanto a carnificina termina de me consumir. Há a fome. Há o faminto. O sublime erótico, monstros do interregno da razão.
A língua volta a rastejar sobre o meu rosto, que mais se parecia a cabeça de suíno recém-abatido. Ao menos, ainda sobra um olho e um nariz. Sua barba mal feita arrepia os músculos da minha cara. Talvez um sussurro? Adoração no altar dos afogados? Ele me beija com força na base do pescoço, surpreendentemente intacta, um prelúdio ao abocanhar violento que seguiria. Assim, meu osso hioide estala, se parte, cirúrgico e preciso, meticuloso ao separar-me em dois. Meu próprio corpo, extensão de mim, se torna negação. Caio ao chão, o momento angular não consegue me privar de assistir o resto do espetáculo. Aí me torno espectador do próprio fim. Vi ele posicionar seu membro entre minhas coxas. Enquanto eu, depois de esquartejado, testemunhei os prazeres da carne. Vi meu fígado, meu estômago, como águas-vivas despejadas na areia da praia, ao passo que as vias se tornaram fato. Não sei dizer quanto tempo durou. Quando não sobrou nada além de tecido conjuntivo, pele e ossos, ele olhou de volta para mim. Ainda insatisfeito, olhos de caçador. Me levantou do chão, me pôs de frente à sua virilha. É assim que Longinos olhou para Cristo? Meu último globo ocular se rompeu, dando espaço para o mastro rijo do sicário que me desfez. Minha consciência transitava entre os mundos, toda vez que a ponta esmagava meu lobo temporal contra a caveira. Meus pensamentos, papa. Minhas memórias, creme. Eu, misturado ao sêmen que vazava da órbita direita. Pulsão de morte com a pulsão de vida.
Quando eu era criança, passava o dia inteiro na frente da tevê. Eu via o mundo por meio do tubo de raio catódico. O externo tão longe e tão perto, escapatória da vida vazia de uma infância solitária no interior do sudoeste paranaense, onde as tardes cheiram a soja. Logo, a tevê como mídia jovem morreu, e uma parte de mim morreu com ela. A outra parte estava nas redes. Lá, sim, sentia o gosto do mundo, os sabores e as cores do universo cinza da simulação. As redes me mostraram tudo. Me ensinaram a caçar, a colher fruta do pé, falar com os rapazes. Tive minha menarca aos 12 anos. Do sangue, moldei o homem, em minha imagem e semelhança. Uma ideia de mim, de quem queria ser, nascido da radiofrequência e meu desejo de ser outro. Seja bem-vindo, flagelo, ao seu destino final. Onde nós dois terminamos, algo novo há de começar - nós dois corremos, para que o novo possa caminhar.