Visões de interesse nacional numa anarquia construtivista

O espelho é, por natureza, indelével traiçoeiro. Tão necessário para ter uma visão de si como outro, uma habilidade muito empoderante, mas ainda assim um outro inerte, restringido. Um outro que, por natureza, está fixo à parede. Está ali, presente à demanda, mas consegue oferecer pouco mais que mera utilidade. Porque o Outro, capitulado, este possui tantos olhos quanto existem pernas ou rodas ou portas neste mundo. Enquanto houver percepção, haverão Outro, singular, mas transitório em sua postura. E começa aqui a lista de razões pelas quais tentar inferir o olhar do Outro (egrégora) a partir do outro (espelho) é um erro grotesco.


- Tá ok, amigo. É só esse comprimento da camiseta que não realça suas pernas.
- Então eu troco. Nada demais. O look cândido-horny vai ter que ser outro dia, quando eu cortar essa camiseta.


A partir de uma visão plenamente física, óptica, refração-do-fóton, o outro (material) perde e muito para o Outro (social). O Outro possui miríades de posições, filtros, truques da luz, que circundam, abraçam, sufocam, centenas de milhares de variações que flutuam, suspensas no éter, para colapsar em silêncio na órbita ocular. Quantas visões de eu existem que nunca verei? Quantos cenários me coloquei que, sem saber, convocaram a atenção áurea dos glóbulos ao redor, curvando os feixes para convergirem num momento célere, porém célebre? Estes pontos de vista, enxames do enxergar, me atravessam em constante mas, por serem plural, nunca terei comparação ao ver-me pelo espelho.


- Amigo, quer dar uma volta? Pra achar alguém pra ficar.
- Não, querido. Se quiser ir, pode ir. A gente espera.
- Ah, então não. Era mais por você.
- Anjo, por favor. Eu não sou seu caso de caridade.


Mas o outro (prata e alumínio) também fica muito atrás do Outro (sangue e espírito) porque não consegue, efetivamente, ser uma visão de fora. Qualquer visão que vejo de mim, através do espelho, está fadada a ser uma corruptela falsa, contaminada com o que minha fértil imaginação concebeu por ser visões de fora. Na verdade, o espelho é, ainda, visão minha. Outro ponto de vista, outro ângulo, mas é, ainda, minha córnea. O outro de metal é um simulacro, um espantalho do Outro. Como me preparar para os inescrúpulos do Outro, se tudo que tenho é uma pantomima?

Ainda assim. Tivesse eu um Outro (pessoa) cativa, mas flutuante, multifacetada, para comunicar-me seu olhar perfurante e alienígena, seria de utilidade? A fotografia matou as artes visuais? A Kodak se tornou árbitro da verdade imagética? É bem posto que, oras, não. É só que, cá entre nós? Estou farto de mentiras. Ainda mais se vieram de mim.