Sempre achei Finados um feriado extremamente indiferente, talvez mais indiferente do que outros feriados costumam ser. Porque é complicado se empolgar com um feriado tão mórbido: todos os benefícios de não ter que trabalhar, mas todas as questões existenciais que você procura afastar da cabeça.
Na verdade, morrer é um conceito muito abstrato. Sendo o ateuzinho que sou, não acredito em vida após a morte, se acabou, acabou. Até porque eu nunca presenciei o horror da morte, nunca vi um cadáver em pessoa. Não um daqueles cadáveres bonitinhos, que a funerária ajeitou; um cadáver de verdade, um boneco irresponsivo com certa probabilidade de estar ensanguentado ou com algumas partes do corpo esburacadas. Até onde eu saiba, quando morremos, viramos pequenas capelinhas em um cemitério, construído justamente para esconder os mortos da vista, pra não sentir o fedor pútrido da decomposição e poupar nossos olhos do terror visceral de assistir o show da pós-vida comendo nossos entes queridos pedacinho por pedacinho.
Acho, inclusive, que centenas de anos de rituais fúnebres embrenhou na nossa cabeça uma espécie de beatitude que conferimos aos mortos. Claro, pode ser apenas o ateuzinho jovem na minha cabeça falando, mas não vejo valor algum em um corpo morto após as devidas cerimônias de despedida. É facilmente compreensível o valor que um rito de passagem e último adeus têm no nosso processo de luto, mas, depois disso, os mortos só trazem problemas: espaço permanente ocupado, o ocasional roubo de lápide, desviados roubando corpos recém-sepultados para fins nefastos, enfim, estresse. Por isso, quando morrer, quero que joguem meu corpo aos corvos. Quero intoxicar cada animal que violar meu corpo com minhas artérias entupidas de colesterol, minhas camadas sobrepostas de gordura, meu sangue supersaturado com glicose. Quero que passem por um breve momento indigesto, cada um deles. Não que eu atribua um certo valor ao meu cadáver, como o uso da palavra "violar" pode inferir, mas porque quero que a ordem natural tenha dificuldade em engolir esta vaca na linha de abatedouro que chamamos de "tempo".
Tenho desprezo, sim, pelo que chamam de "ordem natural". Dizem que é egoísmo querer viver indefinidamente, que a vida ia perder o sabor sem um limite estipulado. Eu digo que é besteira, amigo. Você passa o dia todo jogando o mesmo jogo, assistindo os mesmos filmes, comendo as mesmas comidas, isto é, sempre na mesma fonte segura de entretenimento por anos a fio, até um dia cogitar subitamente abalar as estruturas e - olhe só! - alugar um filme de terror ao invés da comédia romântica de sempre. Nós somos ratinhos num playground infinitamente extenso, com tubos e rodinhas de todos os tamanhos, mas teimosamente afirmamos que apenas parar de brincar traz sentido ao playground, que rapidamente nos esgotariamos de todo o seu conteúdo, e que logo logo perderia toda a graça de "ratinhoar" por aí. Só posso desejar um pau no cu coletivo de quem fala essas asneiras, e afirmo: se segue a lógica, coma um brigadeiro e depois se mate. Não precisa ser um brigadeiro muito bom, pode fazer com margarina barata e queimar um pouquinho mesmo, porque não faz diferença. Se é o fim da vida que traz valor aos seus prazeres intermitentes, que tudo acabe logo, e multiplique o prazer deste chulo brigadeiro.
Sarcasmos desnecessários de lado, digo com segurança que não sou o único que não se conforma com o Destino Inevitável. Se não fosse assim, o Dia dos Finados não seria tão quintessencialmente mórbido. Tenho fé que, talvez não antes da minha, também conquistaremos a morte. Pois o que vemos, conquistamos. Alguns percaustos sempre aparecem, mas tão logo quanto aparecem, são atropelados pela Marcha do Progresso. A exponencialidade do processo é tão assustadora quanto inebriante, eu sei, mas cabe a nós confiarmos aos nossos nossos herdeiros o esclarecimento necessário para o bom uso e legitimização desta apoteose, pois esta é a nossa natureza. Se não nos mostrarmos dignos do poder de um deus, pereceremos por nossas próprias mãos.
A suprema MILF de Evangelion, Misato Katsuragi, disse que "os atos dos homens são superiores aos atos de Deus". A frase perde o sentido quando se percebe que "atos de Deus" e "atos dos homens" são meros sinônimos.