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    O outro dia, a organizar tralhas antigas, tropecei em um objeto retangular, que estava coberto uma grossa manta. Levantar o véu maciço revelou não apenas uma espessa nuvem de poeira que engatinhava pelo chão do sótão, como também a mim. Estava lá, refletido na superfície prateada do que tudo indicava ser um espelho. O que, por si só, já era um fato enfadonho, logo que não me lembrava de ter guardado espelho algum em casa. Masmorras da memória de lado, passei um momento fitando o outro eu. Não parecia, em verdade, nem um pouco comigo. Podia ver no rosto pálido várias coisas que hoje deixei pra trás. Muita coisa sobre os outros, muita coisa sobre mim - como se chorume pingasse das vértices do espelho. De fato, pouca coisa boa no outreu. Ao menos tinha menos espinhas, menos peso, e certamente mais cabelo. Aquele cara, então, já foi eu. Pelo bom e pelo mau, não é mais. Mas já fui, e isso não posso apagar.

    Lentamente, me sentei no chão, e me pus a observar - talvez, relembrar. Como eu cheguei até aqui? Digo, não no sótão. Eu tenho um sótão? Não interessa agora. Onde foi que esse moleque tropeçou, caiu e virou eu? Tirei meu celular do bolso. Ele também, já que era um reflexo, e a gente se mostrou o que estávamos fazendo antes de chegar aqui. Como capa e contracapa do mesmo livro, as divergências no meu ideário se abriam, antíteses do ego. Da esquerda pra direita, do contra ao favor, lembrei sem carinho de mim. Em desprezo ainda maior, ele contorceu completamente o rosto; foi aí que vi que não era só um reflexo. Era eu, mesmo. Eu comigo mesmo; ali, comigo. Por que tenho que ficar de cara com ele agora? Ele não me representa mais, é um escroto, um estranho. Comecei a olhar pros lados e, que lugar é esse? Tanta tralha junta num mesmo lugar, de quem é isso tudo? Eu não tenho um sótão, minha casa não—

    Vários cacarecos. Livros. Cobertos por uma camada grossa de areia fosca que o tempo cuidadosamente dispôs, grão por grão por grão. Livrar o pó dessas tralhas nem ao menos reclamava o lustro que elas outrora tinham, o tempo tratou de apagar isso também. Ainda assim, esses objetos eram repulsivamente familiares — e com razão. Eram meus. Ainda são. Alguns, eu abandonei mesmo. Outros, ainda levo comigo. Mesmo os mais novos seguem cobertos por camadas igualmente espessas desse miasma temporal. Que inferno, que inferno. Preso dentro de mim, comigo mesmo. E ele me encarava através do espelho. Parecia acostumado. Como se nunca tivesse saído de lá. E qual era a ideia dele, me prender junto com ele? Me recuso, não com ele, não comigo! No chão, o único objeto que tratava de reluzir naquele espaço oscuro (uma faca). Sem graça ou leveza, reclamei o perfurocortante e me dirigi ao espelho, que para minha surpresa estava vazio. Eu me encarava, do meu lado, a mim mesmo. Como noites de geada no sul, meu sangue gelou. Tardei a sufocá-lo e, como sempre soube, meu passado seria o meu fim. Me dirigi de volta o olhar dilacerante que tantas vezes voltava a mim. Sendo julgado pelos meus próprios pecados, deles não conheci dor; recebi um abraço. Forte. Aconchegante. Do jeito que sempre elogiavam o meu. Gotas salinas caíram sobre o assoalho, enquanto me apunhalava, eu em mim. O ser como negação de si mesmo. Fazia força. Rasgava meu caminho através das minhas costas, enquanto o buraco que abria nem um pouco me machucava; de verdade, só revelava um vazio que sempre esteve ali. Quem sentiu a dor, no final das contas, fui eu, enfim que não posso apagar o fato que eu já fui.

    Acordei na minha cama, com sangue na boca. Acordei no meu quarto, mas ainda não saí do sótão.