Late lunatismo

    Au au. Au au au au. Era mais uma noite de verão, e os cachorros da rua faziam sua presença. Quase toda noite era essa cantoria. O bairro pacato onde Bento morava era cheio de caninos, sejam vira-latas ou aqueles nos quintais das humildes casinhas paranaenses. Assim, cresceu com esses latidos notívagos, que ninavam seu dormir. Acostumou-se até demais ao barulho, a ponto que em dias de pouca gritaria, achava difícil cair no sono. E foi numa noite dessas que lhe perfurou o pensamento: sobre o que diabos estes cachorros estão falando. Porque, certamente, estão falando sobre algo. Talvez sobre o dia de hoje, como está o clima, sua marca favorita de ração, mas não latiriam pelo puro prazer de latir - ou será que sim? Quanto mais tentava pensar sobre o assunto, mais as respostas fugiam. Era como se houvesse acordado para um grande mistério do mundo, tropeçado em algo escondido em plena vista. Pensando nisso, eventualmente caiu no sono, sonhando em ossos roídos e sapatos mordidos.

    Do jeito que dormiu, acordou - atormentado pela dúvida. Olhava pra fora, pela janela do seu quarto, para o pequeno quintal de sua casa, onde mantinha seu próprio amigo peludo, um vira-lata ranzinza de leve semelhança a um terrier brasileiro, nomeado Chico, muitas vezes um integrante do coro animal noturno. Chico tinha uma vida tão pequena, não? Passava a maior parte do seu tempo no quintal, exceto pelas vezes quando fugia, ou quando era levado para dar uma volta no bairro. Tinha comida, tinha água, tinha onde dormir, ainda assim resmungava tanto. Por que será que Chico latia tanto? Certamente alguém saberia. Seu pai era um homem inteligente, conhecido dos fatos da vida, talvez ele poderia dizer. Bento o encontrou na cozinha, tomando uma xícara de café.

    — Pai, eu...
    — Diga, meu filho.
    — Eu queria saber se... você sabe o que os cachorros ficam latindo de noite?
    O pai ameaçou cuspir seu café, atordoado pela pergunta inesperada, e tentando suprimir o leve riso.
    — Que tipo de pergunta é essa, Bento?
    — Eu não sei, eu só queria muito saber. Eles devem estar latindo sobre algo, não?
    — São cachorros, Bento. Eles não falam. Vão estar conversando, agora?
    — Então latem por quê?
    — Se eu soubesse, estaria latindo junto, meu filho.

    O pai tornou sua atenção, mais uma vez, ao café amargo que acabara de passar. A conversa terminou, e nada foi respondido. "O pai sempre foi um homem dos livros, não tem muito conhecimento de rua", pensou Bento. Então talvez sua mãe saberia dizer; criada na roça, deve ter ouvido histórias e causos sobre coisas além dos livros de seu pai, cuja fonte de saber era exclusivamente científico. Mas a mãe não estava em casa. Na mesa do almoço, apenas seu pai e sua irmã debruçavam o repasto típico de um sábado banal. Os três consanguíneos mastigando ferozmente a ração posta na mesa.

    — Amanda, já parou pra pensar por quê os cachorros latem de noite?
    Ela fitou o irmão com uma cara de leve confusão. O pai interrompeu, achando graça:
    — De novo isso, Bê. Tá faltando tema de casa, pelo visto.
    — É sábado! E eu só tô curioso, nada demais. A pergunta nem foi pra tu.
    — Então diz, Amanda, você sabe responder a pergunta do teu irmão?
    A irmã, que não se engraçou com as tiradas de seu pai, respondeu.
    — Pergunta diferente, né, Bento. Nunca pensei nisso não...
    — Pois é, eu tava pensando nisso ontem de noite. O Chico late e late quase toda noite e a gente não sabe nem o motivo.
    — Assim, dizem que é por causa da lua, né? Não sei dizer onde ela se encaixa, mas eles sempre latem pro céu, né? Talvez tenha dessa.
    — Acho que você me deixou com mais dúvida ainda.
    — Ah, Bê, desestressa. Se eu ficar sabendo, eu conto pra ti também e a gente marca de latir pra lua com o Chico.

    Todos na mesa riram um pouco; especialmente o pai, tendo dito a mesma coisa para o filho há alguns minutos atrás. Bento não riu tanto, e indignou-se ao perceber que ninguém sabia responder a pergunta que tanto o assolava. Ao seu lado, quase que querendo entrar na cozinha, estava Chico, seus olhos esbugalhados de pérola negra cortando o ar. Um frio subiu as costas de Bento, que levou um susto quando sua irmã enxotou aos gritos o pequeno vira-lata. Terminado o almoço, ele se permite um raso copo de água gelada. O barulho da língua chata batendo sobre a superfície d'água ecoava na tarde quieta de fim de semana.

    Algumas horas depois, a mãe estava em casa, com uma companhia familiar. Junto de sua mãe, estava uma outra senhora, comadre de longa data, as duas sentadas na sala de estar comentando sobre fofocas locais e horários de novela. O menino pensou muito se deveria se intrometer na conversa das duas amigas faladeiras, mas a dúvida cruel eventualmente venceu qualquer inibição, como dúvidas tendem a fazer.

    — Oi mãe, oi tia...
    — Bento, quanto tempo, guri, parece que sumiu!
    — Esse aí — debochou a mãe —, só aparece se tem comida, é oportunista!
    — Ah, também não é pra tanto, né mãe...
    — Essa tua mãe só enche o saco — a senhora retrucou —, e nem pode falar nada. Era pior que ti na tua idade!
    A mãe ficou claramente envergonhada.
    — Viu... eu tinha uma coisa pra perguntar...
    — Diga, meu anjo.
    — Conhecendo meu filho, lá vem história.
    Bento trucidou a mãe com o olhar.
    — Vocês sabem por que os cachorros latem tanto de noite? Ficam se conversando, gritando, mas só de noite, quando tem lua.
    As velhas amigas contaram conter o riso.
    — E isso é coisa que se peça pra visita, Bento?
    — Viu! Não sabem. Ninguém sabe! Vou ter que pedir pro Chico?
    — Filho, cachorro é um bicho briguento. Eles latem pra assustar, aí os outros também latem, fica uma bagunça e; ai, meu pai! — a mãe se levanta de supetão — Deixei um bolo no forno. Licença comadre, vou dar um pulo na cozinha. Bento, não aborrece a visita.

    Logo, ficaram só Bento e a senhora na sala.