Eram 15:48, uma tarde de domingo. O sol tímido volta e meia se fazia presente na janela do hospital. Ali, ela fechou os olhos uma última vez. Não conseguimos salvá-la. Foi uma decisão pesada, mas, no final das contas, um consenso, pois já estávamos todos cansados de tentar empurrar o inevitável. Um por um, cada um de nós iria parar de funcionar. Eu fiz questão de ser o último; na verdade, eles não sabem, mas ainda funciono. Quando a enfermeira veio checar a situação dela, eu me esforcei para não transparecer que ainda estava lá, vivo, apesar de tudo.
Devo deixar claro que tenho meus motivos. Principalmente, ela. Eu, mais do que qualquer amigo, que qualquer parente, eu sabia tudo sobre ela. O que dava motivos pra ela continuar viva. O que lhe tirava o sono nas noites sem estrelas. Cada sonho, cada suspiro, era um contrato íntimo entre nós dois. Pra mim, seria um absurdo deixar que tudo aquilo que ela sentiu, viveu ou quis viver, fosse devorado pelos necrófagos e retornado à terra assim, sem mais nem menos. Desse modo, me incumbi a tarefa de viver. Continuar carregando comigo, até o fim do mundo, nossas cores e nossas dores.
Claro, não esperava que isso realmente fosse acontecer. Afinal, o que é um órgão sem o resto do sistema, ou melhor, do organismo? Até hoje, sigo plenamente capaz de bombear uns bons quatro ou cinco mil litros de sangue por dia. Menos do que um coração saudável comum, e certamente menos do que o meu recorde (nove mil cento e trinta e seis litros!), mas ainda sigo batendo, e é isso que importa. Passei despercebido por toda a equipe médica do hospital. Logo, todos nós estávamos na casa funerária. A maioria já não estava presente em mente, por assim dizer, mas alguns, eu incluso, queriam ver todo o processo de preparação do corpo, funeral e enterro. Já estava processando a ideia de passar o resto dos meus dias soterrado e esquecido sete palmos debaixo da terra, mas o destino não quis.
Sem querer, mas talvez subconscientemente querendo, acabei chamando atenção do homem que preparava o cadáver dela. De um jeito cômico, se não triste, o pobre homem achou que ela ainda estava viva - deu umas chacoalhadas nela, checou a respiração, enfim, procurou todos os sinais vitais, e só achou... eu. Uma pessoa sensata teria contactado o hospital, mas acho que ele entendeu, mais ou menos, o que estava acontecendo. Quando dei por mim, a caixa torácica, o ninho rígido e seguro onde passei todos os meus dias, foi delicadamente violada, e com a mesma delicadeza foram recortados os tecidos e vasos sanguíneos que me prendiam ali. Fui parar numa pequena vasilha de vidro, onde até hoje sigo batendo, mesmo desvencilhado dela.
Acho que o homem fez um bom trabalho escondendo o procedimento, visto que depois do que aconteceu fiquei um longo tempo pulsando naquela vasilha, posto no alto de uma estante. Com certeza, melhor do que o interior ocluso de um caixão soterrado. Passei a fazer parte da decoração do casebre humilde do homem que cuidou do corpo que habitava. Certamente, qualquer pessoa que adentrasse o cômodo iria se apavorar com a visão mórbida de um coração humano empoleirado no alto da estante, ainda mais um coração pulsante. Mas ele não recebia muitas visitas; talvez o trabalho em uma funerária não seja acompanhado por um grande prestígio social. Lá de cima, acompanhava o cotidiano do homem, lembrando com carinho das pequenas e grandes coisas que sentia no cotidiano dela.
Devo dizer que, depois de um tempo, ficou tudo muito chato. Não sei o que esperava da vida após a morte, mas se um dia fosse realmente morrer, seria de tédio. Nunca acontecia nada de novo na vida daquele homem, e a monotonia gritante começou a encharcar o meu existir. Meus músculos começaram a murchar; as memórias que tinha dela pouco a pouco se esvaíam. Ainda guardo alguns bons momentos comigo, mas os detalhes ricos das angústias e alegrias hoje são um borrão. Uma vez, um passarinho entrou no casebre e começou a perambular pela estante. Não consegui conversar com ele, pois não tenho boca, mas ele também não parecia estar a fim de conversa, visto que me derrubou do alto da estante. Acho que foi o momento de maior emoção que já vivi nessa casa. Quando o homem voltou do batente, recolheu os cacos de vidro no chão e me pôs em outro pote, onde antes haviam ovos em conserva (às vezes, consigo sentir o gosto da salmoura).
Depois de um certo tempo, comecei a sentir certa compaixão com o rapaz, o que, francamente, me arruinou. Provavelmente este homem também possui um coração, com o qual compartilha seus sonhos impossíveis e frustrações do dia-a-dia. E é nessa parte que a ficha cai como uma pedra. A razão pela qual sigo pulsando até hoje foi pela memória de uma pessoa que já morreu. Pelos sonhos que, apesar de fantásticos, permeiam o coração de qualquer pessoa viva nesse mundo - enfim, me enfatuei com o ordinário. Não posso circundar o fato que não só seu corpo, como tudo que representa ela, está fadado a ser soterrado, assim como os sonhos do homem, assim como toda criatura mortal que já caminhou por essas terras e ousou sonhar. E eu não posso carregar o fardo de todas essas criaturas sozinho - seguir em frente foi, mera e simplesmente, ledo engano. Nunca achei que seria o sujeito de uma crise existencial. Se pudesse, teria pedido ali e então para o homem derramar algumas doses de cachaça no meu pote.
Fazem alguns anos que o homem se cansou de olhar pra mim e me colocou dentro de uma gaveta. Será que ele comprou alguma decoração menos asquerosa para pôr em meu lugar? Enfim, não sei de mais nada sobre a vida dele, mas depois de um tempo comecei a escutar uma voz feminina e, mais alguns anos depois, pequenos passos apressados batendo contra o chão de madeira. Na medida do possível, fico feliz por ele. Não posso culpá-lo de ter me escondido aqui dentro - acho que ela faria o mesmo, ou pior, teria me jogado no lixo. Também não sei quanto tempo me resta aqui, mas sei que estou ficando paulatinamente mais fraco. Talvez me entregue de vez quando conseguir aceitar que, por mais absurdamente brilhante que possa ser, a vida também é excruciantemente comum.