ode

   Existe, lá ao longe, um sítio perdido. Um ponto de convergência entre a nostalgia, o lúdico e o devir-adulto. Lá, se afastando mais, estão encalhados incontáveis pontos de dados, flutuando em estase sob um abismo preto. Ligamentos e articulações mudas, incapazes de criar movimento, cristalizadas pelo celuloide do Real. As ruínas de Elcromado.

   Era um nexo. Servia um propósito simples. Pessoas entravam, mascaradas, e, pela ritualística das Velhas Formas das Redes, algemavam-se às restrições desse ambiente pelo simples prazer de fazê-lo. Sem vídeo, sem áudio. Apenas texto, um avatar, um ambiente a ser habitado. Seguia-se, aí, uma reencenação da vida pelos moldes do píxel. Regras de uma inefável etiqueta virtual, que se tornaram estrutura para agentes de todos os cantos da lusofonia. Um suspiro de saudade, frente a plataformização de tudo que é online.

   E cabe reafirmar como, no coração disso tudo, havia a nostalgia, quase axiomática. A saudade do que foi vivido, mas que é passado. Um apego quase infantil, mas comum a todos nós, pelos andaimes culturais do amadurecimento. Para os habitantes desse sítio, estes andaimes foram a fase pós-epistolar da Internet, quando o simultâneo já era comum e, aos poucos, se sofisticava. Não era o caso que tudo era [ciber]mato, mas também não era uma cidade. Chamadas de vídeo eram factíveis, mas inconsistentes, onerosas e até um pouco temidas (ainda mais para nós, então-pequeninos). Nesse interregno entre o IRC e a realidade aumentada, floresceu um multiverso de mundos virtuais, jardins multicores de interatividade onde as maleáveis mentes da juventude podem, até hoje, brincar de webcasinha com pessoas de todo-onde. Esses mundos ensinaram muitos de nós a encontrar prazer na teatralidade coletiva, no fingir-ser; se entregar ao que é possível quando nada é de verdade. Eventualmente, se cria uma memória, um vínculo afetivo, uma amizade e, vias de fato, uma verdade -- tamanho é o poder da ficção.

   Mesmo que hoje o próprio sítio seja ruína, seu nascimento vem de uma profunda arqueologia digital. Ele repousava sobre as costas de diversos gigantes: aqueles que primeiro ergueram o Mundo; aqueles que, como Prometeu, roubaram e fizeram circular as ferramentas dos senhores; aqueles que as sofisticaram e descomplicaram, fertilizando o berço da Criação; e aqueles que, ferramentas em mãos, remendaram o tecido da realidade para criar novos Mundos. Uma cosmogonia contínua, múltipla, de loci de memória na infinita [information super]highway. Quiçá, um reflexo da atitude faça-você-mesmo que, apesar de presente na Internet desde seu princípio, também vem sido soterrada pelas hegemonias corporativas do capitalismo tardio. O sítio era nexo, não obstante, refúgio.

   Nesse refúgio, deram-se incríveis atos de transubstanciação. Com a mesma entelequia de uma flor, as memórias criadas foram cravadas nos infonodos de sua carcaça. Basta um clique: paredes se erguem, se pintam, se riscam, e o espaço se torna maior do que a soma de suas partes. Um quarto vira templo, vira ninho. Naturalmente, arboresce uma rede, uma concatenação-exponenciação de ambientes sagrados, reiterando o espaço real para que, talvez por magia simpática, o virtual faça sentir sua influência sinistra sobre nós. Usando a linguagem do que existe para descrever o possível, se desenvolvia uma esqueumorfia do amor.

   Eventualmente, contudo, o sonho acaba, a onda colapsa, resolve-se a contradição. O virtual é infinito apenas na teoria: na realidade, todo sistema está sujeito a um estado de falha. Sob tensão, arrebenta; sob choque, desmantela; sob pressão, estoura. Como poderiam tantos vetores serem unificados apenas pela força da nostalgia? Os três pontos, outrora em convergência, continuam sozinhos suas trajetórias através do cosmos. Deste alinhamento planetário, sobra apenas um corpo vagando a esmo, esperando ser devorado pela marcha psicótica da entropia. O cadáver de um momento, marcado e atravessado por tudo que não mais é, que existe agora apenas como símbolo.

   É aqui que me encontro, uma testemunha do desligar das luzes. Olho pra trás, busco e rebusco, tentando digerir e fazer sentido dessa blitzkrieg. É uma continuação da honrada linha de arqueólogos digitais, desbravando as paredes que se eriçam sob o toque quente de um velho usuário. Vejo uma camada de mofo, como neblina, formando-se fina sobre a cibersuperfície serena e gelada desse Mundo em decomposição. Toda quina acumula poeira, lembranças mortas, que se dispersa quando perturbada. Memórias que entram pelo nariz, irritam a traqueia, provocam uma tosse que chacoalha o corpo todo. Os canos e paredes rompidos, formam uma suspensão aérea de fibras de amianto, veneno perene que carregarei comigo por anos sem fim. Vertigem.

   E os anos passarão. E as fibras dissolverão. E os píxeis que se queimaram na minha retina estarão lá, me assombrando para sempre. E cada vez que a memória bater, assombrarei este sítio também. É como um charme vagante uma vez me disse:

"[...] a memória é um órgão longo e delicado
revela muito menos
do que sabe
dorme sob a pele alerta
alerta".


Aqui dentro, entendo-a melhor se for aranha
cuja teia enreda
o mundo
arrasta o que não deve
prende a si mesma
meio sem querer.