Não sei se eu já falei aqui, mas eu pego um ônibus todo dia.

    Se não falei antes, agora sabem. O cursinho Alfa fica a uns bons 100 quilômetros de distância da minha cidade, então são quatro horas de ônibus diárias - duas de ida, duas de volta. E eu absolutamente desprezo os momentos que eu passo dentro daquele ônibus.
    Não quero transparecer que tenho algo contra o motorista - pelo contrário! O sr. Junkes é um homem muito carismático e gentil. Todo ano ele organiza seus famosos costelões para o pessoal do ônibus poder confraternizar, o que eu acho muito legal. Mas aí está a questão. Confraternizar. Acho impossível, para mim, poder se misturar com os outros estudantes do ônibus. É eles quem eu detesto. Não só eles, mas por enquanto estarei focando neles.

    Veja bem, leitor, o perfil de meus colegas de ônibus. Eu e alguns outros nos destacamos dentro desta análise pois, paradoxalmente, não nos destacamos. A dicotomia chad-virgin fica extremamente clara num ambiente como o busão do Junkes. Enquanto eu procuro dormir ou fingir que não existo durante as viagens, o resto dos estudantes estará jogando truco, bebendo, escutando música alta e gritando. É um inferno. Mesmo se tentasse, não conseguiria me relacionar com esses animais, pois somos fundamentalmente diferentes. Temos valores diferentes, gostos diferentes, em nada nos assemelhamos - quer dizer, além do fato que pegamos o mesmo ônibus. Não piores, nem melhores, apenas diferentes.

    E tenho que reafirmar: nem melhor, nem pior; se não o fizer, meu próprio julgamento cínico já irá tomar conta e assumir superioridade sobre essas pessoas. Acho que tantos anos vivendo em uma cultura de desprezo às instituições de ensino particulares me tornaram um esnobe. Sem perceber, assumo a incapacidade dos que "se contentam com menos". O que, obviamente, só agrava o meu dissabor em compartilhar o mesmo espaço com esses elementos. Quando paro pra pensar, me sinto humilhado, por desprezar os estudantes da Unipar mas, ao mesmo tempo, nem mesmo estar cursando uma faculdade. É dissonante, mas não importa, o vitriol do ego não precisa de lógica para se fazer destilado, apenas orgulho.
    Até porque, como posso assumir que os outros são inferiores, se o único miserável naquele ambiente sou eu? Os outros parecem se divertir à beça, enquanto eu fico lá, parecendo o Grinch. Um leitor atento consegue notar a diferença no tom do texto: ao depreciar os outros, logo assumo minha própria falha, e passo a me autodepreciar. O mesmo acontece no ônibus, e este é o segundo motivo pelo qual fico feliz de meus dias de migrante estarem contados.

    Como disse antes, no ônibus fico sozinho. No ônibus, desprezo os outros. No ônibus, passo a me desprezar. E é nessa seção de autoreflexão que começo a encarar meus demônios internos. O abismo começa a me encarar de volta. Tenho duas horas sem internet naquele ônibus. Sem distrações, me vejo obrigado a ficar sozinho não só fisicamente, mas também com os meus pensamentos, que estão entre as coisas que eu mais temo. Forçado a pensar sobre o que eu não quero pensar. Solidão. Morte. Velhice. Decepções. Humilhações. Todo este chorume flui pelo meu cerebelo, atravessando a barreira sangue-cérebro e me atingindo nos meus pontos mais fracos. Não posso gritar. Não posso sair do ônibus. Não posso me distrair de jeito algum. O que nos resta são duas horas de terror claustrofóbico, na escuridão da noite.

    Mas segue o baile. Assim é a vida - apenas trevas e ranger de dentes.






pelo mesmo motivo, também não consigo dormir sem estar com o celular por perto. destrói a qualidade do meu sono, mas pelo menos consigo dormir sem ficar pensando coisas terríveis.