O poeta e o príncipe

    O céu cobreado já ameaçava o cair de uma noite gelada de outono na clareira. Os raios de sol, despidos de seu calor, cortavam entre a cobertura das árvores, caindo limpos sobre a grama rasa. O vento sussurrava com as folhas; os sapos murmuravam com os insetos, que traziam suas afirmações pontuais; as raízes e fungos, imperceptíveis, escutavam. O único som fora do lugar era a batida estrondosa, quase percussiva, do peito do poeta, estirado no centro do cenário como se pedindo perdão para a natureza por destoar da sacra ordem que havia sido orquestrada naquele ambiente.

    A natureza, contudo, sempre foi inocente aos dissabores da humanidade, e respirava ao redor da forma masculina que usava seu cenário como leito. A aura de antecipação encharcava o mato ao redor, fazendo as pontas da grama reverberar em contra-tempo com as palpitações emanadas pelo poeta. As folhas caíam em cima de seu corpo, comandadas a investigar a presença exógena na paisagem pacífica. Nada se sabia, além de uma ansiedade que se sublimava em ocasionais suspiros. Parecia que a carne vestida carregava sua angústia, ali, há séculos, desde o brotar da primeira flor silvestre daquela clareira. Em realidade, surgiu há pouco menos de uma hora, com seu predicamento tão imponente que enganou a vida ao redor a entendê-lo como um fato dado, uma rocha imóvel e íntima ao chão que ocupava.

    Mas a carne do poeta, quente e maleavelmente firme, acusava a enganação. Ele estava, sim, vivo, e estava esperando alguém. Dentro de sua cabeça, sustentada pelas pontas de suas mãos e acariciada pela relva ao redor, milhares de sinapses carregavam, cada uma, um pensamento. Uma preocupação, uma possibilidade, uma negação. Milhares de ideias, borbulhando em uma sopa de pensamentos. Um som longínquo, mas cada vez mais próximo, pontuava a ascensão de cada bolha de angústia para a superfície.

    Rítmico e poderoso, o som acordava a paisagem da clareira para sua atenção. Toda a fauna se espalhava, se escondia, enquanto os galopes estrondosos se aproximavam. As passadas impetuosas tremiam o solo úmido, espalhavam pânico na terra onde reverberavam. O poeta, levantado de seu estupor, rapidamente se pôs de pé, suas vestes levemente manchadas pela grama torcida. Dentre as matas, se fazia presente uma figura esplêndida: era o príncipe, acima de seu corcel cor-de-creme. Ao perceber o aspecto augusto que ali se erguia, as árvores curvaram-se em humildade; os pequenos mamíferos ao redor se esconderam nos arbustos, curiosos para saber o motivo da prestigiosa visita; as raízes endureciam o solo ao redor do príncipe, para dar-lhe um chão mais rijo onde pisar; os pequeninos insetos subiam em fila reta nos troncos das árvores, como em procissão. Todo o ambiente centrava-se no jovem rapaz acima de seu ginete.

    Com a delicadeza de um anjo, o príncipe de pele castanha desceu de sua montaria, a brisa concentrando-se ao redor de sua forma para fazer leve sua queda. O poeta ansioso tremia; sua inquietação escorria das pontas das suas vestes, pingava na terra abaixo e descia muda. O príncipe aproximou-se do tímido cancioneiro; sorria quente, uma tocha a iluminar as microfissuras na lama seca da floresta.

— Em verdade, poeta, me agrada ter-lhe como amigo. Como pedistes, te encontrei aqui, cavalgando sobre os primeiros raios do crepúsculo. Como espero de ti, vejo que carregas consigo as palavras macias que motivam outro encontro. Mas me parecem quebradiças.

— Caro príncipe. As palavras que carrego hoje são, mais do que nunca, mais do que palavras, minhas. As palavras que carrego, carregam elas também algo mais: minha verdade – esta que carrego há muito tempo, e tornou-me pesada demais para ter apenas comigo. Ao escutá-las, quero que as carregue também, ou deixe-as esmigalhar-se como as pedras tão batidas pelas ondas do mar.

    O príncipe recuou seu sorriso; sentou-se no chão da clareira; e escutou.


Interlúdio

O amor enquanto storge

— Oi, mãe. Pra te avisar que eu fiz aquilo que eu te falei. Sim, do rapaz. Ele só agradeceu por ter avisado, antes de silenciar de tudo. Eu não sei. Não quero mais saber, também. Já fiz. E nada que eu podia ter dito ia mudar a situação, né? Sim, sim. Obrigado. Tô precisando, mesmo. Eu vou desligar aqui, tá? Preciso de um tempo. Eu te amo muito, muito mesmo. Só queria saber quando vai chegar minha vez.

O amor enquanto eros

    Eu abri uma garrafa de vinho. Ele não quis. Eu ofereci mais. Ele já tinha alguém.

O amor enquanto xenia

    Ao final, me despedi. Disse que ia sentir a falta dele. Não entendi se ele disse o mesmo; e não sei mais se importava. Subi as escadas de volta para o meu apartamento e me peguei questionando se teria jeito de pensar estarem verdes essas uvas, as mais doces que já vi.


O silêncio de dentro, parte dois

    O príncipe escutou, sim, pacientemente, todas as palavras que o poeta versara. Quieto, uma estátua salutar, obelisco que expia os pecados – estes, em torrente, sem parar.

    O poeta exasperado falou, quase que enumerando, todas as suas verdades que tangiam, de algum modo, o príncipe. Falou de si; falou dele; falou dos dois. Do jeito mais gentil que encontrou maneira de falar, o poeta teceu dentro de si uma paisagem que já imaginava impossível. Usou toda rima e todo linho que tinha consigo, até o de suas próprias vestes. Entregou aquela possibilidade doce, fragmento áureo, para o príncipe.

    Estava frio. O sol aguardava a resposta. Seus raios já não tão penetrantes, sua luz ainda mais gelada. O príncipe, resoluto, levantou-se, suavemente espanou a terra de seus ilustres robes e, mais uma vez, oferecendo seu sorriso encantador, dirigiu-se ao poeta uma última vez:

— Poeta. Suas palavras são belas. São íntimas; são, realmente, suas verdades. É uma pena que devo dizer a ti, meu caro poeta, que são palavras que não posso carregar. Já ouvi-as antes; e de vozes mais encantadoras.

    Com um suspiro, e mais nenhuma letra, o príncipe se levantou. Ofereceu sua última gentileza, um abraço, despido de pesares; talvez não pensasse mais do poeta como seu par. Este, desmontado, não sabia o que fazer, se não aceitar. Sentiu-se abraçando uma grande árvore, apenas mais uma na enorme floresta.

    O príncipe montou em seu cavalo, em direção dos últimos lampejos do horizonte. Não carregava consigo as palavras do poeta, mas em seu rastro seguiam os insetos, os mamíferos, a própria brisa; em seu rastro, esvaziava a vida. No céu, revelava-se a lua, a única com ternura a oferecer. Ainda assim, sentado na clareira cinza, o poeta não podia evitar sentir-se sozinho.