O retorno das valquírias

    Vinham ríspidas, máscaras fechadas, arranhando o Firmamento com a ponta de suas asas. Atrás delas, os lumes solares, vértices quentes da vida, como se arrancados da coroa solar com braço forte e, inversamente, pendurados com mãos leves em cada pena. Queimam tudo onde passam, para que vida nova desabroche. Egrégoras do sublime. Devir.

    Nem todo mundo sabe, mas o figo é uma flor. Escondida, mas flor. Muitas flores, minúsculas, formam um ventre -- morada das memórias das vespas que cavaram suas verdes paredes. Dê tempo, ela disse, e a fruta adocica, a casca fica roxa; morada (espanhol). Tão pouco tempo que tenho, me encontro atrás de floresceres mais rápidos que os da figueira. Quando as valquírias voltarem, bradando fogo e ferro, também não sei dizer se as figueiras ficarão de pé. Seu tempo não é o dos homens. Gomorra.

    Diz-se que Alexandre Magno chorou ao ver o mundo jacente aos seus pés, cândido, à espera de ser conquistado. Lágrimas viscosas, como a boca marejada antecipando rasgar a carne de um figo maduro, tocaram o chão e lá permaneceram, até sublimarem-se nas chamas de sete damas escaldantes que mordiam os ventos helenísticos. Mais de dois mil anos depois, no alto do Itambé eu sentei. De um alto que não é suficiente para jazer o mundo, mas um alto que a luz do sol arde mais forte. Eu sentei, semente de figueira nas mãos, amargurado com o tempo dos homens. O céu estava riscado, quase irreconhecível. Rasura.

    A última vez que eu vi uma valquíria, seu elmo rebatia frio as cores da Victor Meirelles. Ninguém sabia que ele era uma valquíria, só eu. Mordi um figo verde, contei, e estavam frescas as vespas e suas memórias. Confiei a ele este segredo. Figos são flores, disse a valquíria, e fez florescer as memórias das vespas em mim. Em meu ventre, fizeram morada sonhos febris, como os últimos de Alexandre Magno. Sonhei que voava alto sobre o mundo jacente, e chorei ansiando conquistá-lo. O corpo nu e quente, usina de desejos. Sefirá.

    Uma figueira-chilena se espreguiça sobre a rua para sombrear os carros. Quintal da casa dos meus pais. A figueira-chilena floresce mais rápido, mas não dá fruta doce, porque nunca viu uma valquíria. Onde meus pais moram, elas não passam. Onde o Firmamento é mais firme, mais que aqui, lá onde nada muda. Saí de lá seguindo o cheiro de um vapor salgado. Lembro de chegar na rodoviária pela primeira vez, sentindo o salgado das ondas queimando a ponta dos meus cílios. Salgado como lágrima. Um chupim pousando em um ninho. Prelúdio.

    O povo parou para ver as valquírias, vespas douradas. Um laranja incandescente, furioso, derreteu os portões de ferro do Itambé e me abriu vulnerável. O povo parou e o povo bateu palmas, e o esplendor cáustico das damas preenchia cada poro, cada linha das mãos, e as bolhas na minha pele anunciavam a infinita possibilidade dos dias depois da destruição. Pra plantar uma árvore, tem que cavar fundo, ela disse, e me deu uma semente de figueira. Cortei meu dedo no seu elmo pontiagudo. Sangue pingava sobre o mundo jacente. Camael.

    A valquíria queima tudo quando passa, assim como queimou a semente de figueira(-chilena) que eu tinha na mão. Levantei das cinzas e, sem me deixar abater, peguei o primeiro ônibus sentido Centro. No meu ventre, sulco fundo, onde as vespas deixaram suas memórias, onde herdei as lágrimas salgadas de Alexandre, onde restam estrelas pra riscar, deixo espaço para a valquíria pousar. E sei que um dia vai. Carregando nos lábios uma semente de figueira, para plantio. Esta, frutífera; esta, ficará de pé, para dar sombra. Se espreguiçará sobre mim e sobre a valquíria, que sei que pousará. No seu próprio tempo. Florido.