Eu fui ao médico recentemente – otorrino – em uma reconsulta para entender, finalmente, qual era a causa e o grau de severidade da minha apneia do sono. Parece que minhas duas narinas querem me sufocar, e as minhas amígdalas topam terminar o trabalho. Não é divertido ou empolgante, mas explica minha relação tenebrosa com o sono. Com o respirar, em geral, também. É enfadonho falar sobre uma relação com o respirar: não tendemos a parar e perceber o respiro, mas ele está sempre lá, claro. Os dois pulmões, bioacordeões resolutos. Expansão do diafragma; fossas, faringe, laringe, traquéia; comércio químico-celular; contração do diafragma; o sistema expele carbono; repeat. A transação primordial, corriqueira. Esta bolsa de valores não tem folga, mas tem data para quebrar.

    Quando eu recebi o resultado da tomografia, fiquei brincando com as imagens. Mexia frame por frame, fingia entender o laudo. Um conjunto imagético sui generis: meu corpo fatiado em escala de cinza e as minhas cavidades internas desmistificadas no tom clínico da radiologia. Os vetores de fluxo do gigante ímã de milhares de watts atravessaram meu corpo morno para imprimir em algum sistema eletrônico várias dúzias de imagens frias. O calor do sol transformado em planta transformado em carvão transformado em fogo transformado em eletricidade transformado em ímã transformado em informação. Nada se cria, mas algo novo agora se sabe. Desvio de septo. Ruído ribossômico manifesto.

    O médico me apontou com detalhes o resultado que as imperfeições de curso do caminho celular tiveram na minha respiração. Nada bom, claro. Mas corrigível cirurgicamente. Enquanto ele se gabava sobre sua técnica precisa de zapeamento de extensões carnosas com aparatos custosos de penúltima geração, eu assenti com a cabeça sem nenhum entusiasmo, já navegando o cosmo totalmente nauseado (em um sentido mais sartreano, talvez). Meus três eus foram trancados no mesmo consultório: o eu psiquê, o eu animal e o eu combinação-aleatória-de-átomos-no-espaçotempo-contínuo-infinito (que prefiro chamar de “eu acidente”, mas se encurtar a primeira palavra fica “eu combi”, o que é divertido).


ARREPIOS – Tateando levemente a parede, a velha senhora sai do consultório em direção à recepção. O seu acompanhante cospe em alto som perto de sua orelha algo sobre a próxima consulta. As palavras e a saliva rebatem na pele murcha e caem ao chão. Um jato de água quente está lavando o otoscópio.

IMPÉRIO INTERIOR – A serenidade tem preço. Será que ela está satisfeita com o que pagou?

EMPATIA – Você é jovem e já não escuta muito bem. Considere a possibilidade de estar no lugar dela no futuro não-tão-longínquo.

INSTRUMENTO FÍSICO – Patético. Nunca.


    Eles três raramente se encontram – fora nas noites existenciais que, com essas consultas, vêm se tornando mais frequentes. Acontece que a estranheza do ambiente clínico é propícia para estas crises. É onde você se vê dialogando sobre si como quem fala sobre um computador quebrado, quase abstraindo-se da própria consciência do sujeito-objeto. Mas até o agente verdadeiramente maquínico possui peças substituíveis, o que não possuo, pois não o sou. Carne, osso, data de validade. Destruição do organocapital. Junto das imagens da ressonância magnética, nada poderia me preparar para vê-la: uma reconstrução em 3D do meu crânio facial.


IMPÉRIO INTERIOR – Tout l’empire périra.