Eu tenho um amigo que diz que, um dia, tropeçou e nunca mais parou de cair. A rua onde ele morava era meio esburacada, então era um terreno propício pra esses acidentes. Ficou por horas caindo e caindo, não sabia dizer pra onde caía, mas caía. Quando se deu por conta, encontrou o chão um pouco longe de onde tropeçou em primeiro lugar. Diz que acha que não parou de cair até hoje, e que, toda vez que tropeça nos próprios pés, não se sente diferente de quando está em solo firme. De princípio, eu achava que era só uma brincadeira sem graça, talvez uma referência ao "voar é cair e errar o chão" do Douglas Adams; mas não, ele jura por tudo que é mais sagrado nesse mundo que ainda está caindo. Virou assunto de mesa de bar, como anedota de pescador, só que ele realmente parecia ter sido afetado pela queda. Se levantou um pouco mais maduro, disse que "aqui embaixo se pode ver melhor as coisas". Nunca entra em muitos detalhes, diz que é difícil explicar, de um jeito meio "só caindo pra saber".
Nosso círculo de amigos obviamente levou tudo com muita piada, eu incluso. A gente tentava pegar ele de surpresa, fazer rasteirinha. No começo era engraçado, meio que dava segurança ver que cair ainda era uma ação com começo e fim definidos. Mas aí o cara começou a ficar esperto, andava com mais firmeza e, bem, tinha vezes que a gente jurava que a rasteirinha pegou, mas ele simplesmente... não caía. Ou talvez continuava caindo. Isso é confuso. Ele foi ficando mais distante, a gente prometeu que ia parar com as bromas, só que ele disse que não era esse o real problema. Ele começou a andar com gente que, segundo ele, entendia o que ele queria dizer. Gente que também estava caindo. Se foi difícil pra gente compreender uma pessoa caindo pra sempre, oras, imagine uma comunidade inteira!
Acabamos deixando ele de lado sem muita cerimônia. Não era a mesma pessoa antes da queda, não era o amigo que a gente conhecia. Claro, isso tudo deixou a gente com um gosto amargo na boca e, acima de tudo, sem entender muito bem o que de fato aconteceu. Os nossos amigos tentavam fingir que não se importavam muito, que estavam muito melhor sem ele, mas o clima maciço nos nossos rolês era que todos queriam cair, mas ninguém admitia. Só que ainda parecia perigoso, sabe? Uma coisa tão absurda, cair e não parar mais. Ele parecia tão mudado pra melhor, mas será que isso custou muito? Doeu? Ainda dói? Ninguém sabia responder, mas todos queriam cair.
O tempo passou e a gente foi deixando o assunto de lado. Na verdade, tentamos muito cair. Cada encontro novo, a gente estava um pouco mais esfolado, alguns arranhões novos, hematomas indiscretos, e ninguém ousava perguntar nada. E nada mesmo: o silêncio começou a fazer grande parte dos nossos encontros, em uma mistura de vergonha ardente e frustração cinza. Não sei se era a melhor abordagem, mas era o que fazíamos. Um outro amigo, em especial, quase se inscreveu em um curso de paraquedismo. Mas nada. Depois de tanto se machucar, fingindo não saber dos obstáculos entre nossos pés e o caminho em frente, decidimos, ainda num pacto silencioso, virar esta página. Absolutamente derrotados, cada um de nós seguiu nosso próprio caminho. Nunca mais nos vemos.
Quanto a mim, estava indo ao supermercado esta manhã. Acabei pisando nos meus próprios pés, e tropecei. Estive caindo fazem algumas horas.