silhueta

"Dear Daniel,
I can’t think of anything worth writing.
I just write to you
So that you know I am alive,
And that cinders always remain
Where there was once a fire."

-- "Spring Is Coming With A Strawberry In The Mouth", de Roger Doyle

   O outro dia, por um momento, tive um lapso de contentamento descontente. Esbarrei num passado e, por um momento, atrás da minha figura, vi refletido nos olhos um buraco. Uma cavidade, a minha forma dando contorno a uma ausência. Me fez sorrir. Me fez sentir-se vivo.

   Porque estive pensando, de monte, sobre marcas. Não gosto de sentar na grama, mas quando sento, ela se curva para mim. Se cada folha no chão fosse um bit, haveria uma mancha de números-um redonda no formato das minhas curvas, bem onde estive sentado. Está lá meu rastro, mesmo que seja inevitável eventualidade que o vento apague-o, que nem um raio cósmico zapeando a memória de um console antigo. Até agora, sobre a cama, o peso planetar desenha as minhas pernas no colchão. Para calcular a Pergunta Definitiva, o computador Terra está gerando as equações que descrevem a área das minhas coxas. Nisso, também computa a "força normal": as molas do colchão me empurram de volta. O vetor forma um gradiente de pressão através da minha carne macia, e eu me contorço a cada T=10min buscando uma posição que seja confortável novamente. Já disse que tudo atravessa e é atravessado, mas é que também tudo é circular, especialmente quando estamos um pouco perdidos. E se você me olhar de ladinho, assim, encolhida, vai ver que eu sou super circular, e super perdidinha, também; sou x²+y²=r² sem nenhuma variável definida.

   É uma alegria poder participar desse sistema-mundo, fazer interface com as coisas, apertar os botões e ver as rodinhas girando. Empurro com o indicador, a barra de espaço afunda com um clique molhado -- prova que estou aqui, respirando, e com vontade de escrever, a alma pesando na ponta do dedo. Que eu me recuso a ter meus botões, apenas, apertados. Me recuso a ser testemunha quieta dos prazeres e horrores. Deve ser um inferno desencarnar numa alma penada, rascunho de Angelus Novus, ser reta paralela de todas as coisas da vida. Fazer curva no espaço é moleza, faço isso desde que nasci. Mas sinto vontade de fazer curvar o espírito. Estive gritando, de monte, pelo meu direito de ser força normal de alma, também. De saber os valores, onde n ∈ ℂ, que definem o quão queimado está o meu rosto nos OLEDs carcomidos da memória alheia. E ter fé que é um número bem grande, e bem complexo, mais do que só imaginário. Por um momento, curvar o coração de outro. Nem levando aqui, em consideração, minha produção artística.

   Foi por isso que ver a minha cavidade, lá no outro, me deixou tão feliz, mesmo que de maneira um pouco melancólica. Ali, anunciava: Lorenzo Passou Por Aqui, E Fez Alguém Sentir Algo. A doppelgänger da Mima, de Perfect Blue, passando sangue no rosto. Gente, ser vivo também é sobre ser malvado, às vezes. De preferência, sem querer ser, mas abraçando que, depois de um certo patamar y, não há muito o que fazer. Não posso saber com que frequência o vento sopra por onde eu passei; se sentem o relevo gelar, se contraindo termicamente; não posso saber se quando chove, param para se olhar no espelho d'água. Mas posso ver que há uma ausência. E manifesto aqui que é o que quero: que não me esqueçam, jamais. Que sintam o meu peso, e sintam minha ausência quando deixar de pesar. Me esfregar por tudo, e deixar o rastro da minha mão afundada por todos. Os ventos do Paraíso empurram para longe, mas o que eu quero é voar com violência. Que nem valquíria. Deixar as asas abertas e riscar o Firmamento.

"I remember,
I remember the days
when I made you
oh-so-afraid."
-- "Ghosting", de Mother Mother