São quatro horas da manhã. Não sei quando foi que perdi a habilidade de dormir cedo, mas o que começou como uma tentativa de resgatar o controle sobre o meu dia continuou nutrido por muitos anos, até chegar a esse ponto que estou, que dormir e acordar na hora de gente correta parece biologicamente impossível. Talvez seja a luz azul. Mas também não consigo dormir sem ter meu celular do lado. Quo vadis?
É contra o meu melhor interesse estar acordado essa hora, claro. Não sou produtivo nas madrugadas (salvo a comum procrastinação), e por isso meu dia fica só mais curto. Também a luz do sol é terrível para um bom sono, então acabo dormindo muito, e muito mal. Ainda assim, as paredes desta casa bem sabem, não é a primeira vez que escrevo essas horas. Hoje, é porque tenho um assunto a tratar, uma minhoca que se enrola na minha cabeça faz um tempo.
Amor. Sou um poço de amor. Não consigo evitar. Mesmo quando acho que estou segurando tudo comigo, parece vazar pelos vãos e frestas, como quando se está de braços cruzados debaixo do chuveiro. Uma jorrada, uma leitada de amor, em uma imagem pitoresca meio-Bulhões-meio-MatarPardais. Se agarra na minha pele, deixa marcas e pinga por tudo. Uma bagunça. E tudo fica bem, pois, da mesma maneira, me lambuzo com o amor que transborda dos outros. Amo muito, sim, e também sou amado. Está na voz carregada [de amor] da minha mãe quando ela responde um áudio meu. No entusiasmo com que eu aceno para os meus amigos quando vejo-os na rua, e o sorriso largo que me abraça quando eles percebem que sou eu. Nas quantidades torrenciais de vídeos que eu mando para eles, mesmo se falte conversa ou palavra. Quando eu segurei firme a minha irmã durante o show da Mitski, no Primavera... ah, se for parar pra pensar, só neste festival, tem muito. Se for parar pra pensar em qualquer circunstância específica, todo gesto, toda fala, é carregado de um cuidado avassalador, sem cálculos ou pretensões de ser carinhoso. O carinho encontra jeito de sair da gente. Sim, Björk, tudo é cheio de amor.
Sabe que, tão tarde da noite (já é quase dia), não é um horário muito bom pra se pensar em quase nada muito seriamente. Já escrevi sobre a perniciosa madrugada em outro site, faz pouco mais de dois anos. Ainda gosto da imagem dos "tambores de mental e caldeiras de bronze" que usei nesse texto. Às vezes, acho que minha escrita sempre foi sobre traduzir imagens em texto. E talvez essa seja a vocação das altas horas, o labor artístico. Também é pela arte que o meu amor transborda. Tem vezes que sou tomado por um sentimento bobo, mas poderoso, de que não tenho lugar algum pra depositar meu afeto. Nessas horas, eu escrevo. Por sorte, achei outro jeito de transbordar amor, este mais direto. Gosto de tirar fotos. Especialmente dos meus amigos, e da beleza nos lugares onde costumo passar -- que, com certeza, também inclui meus amigos, lindos que são. Gosto quando gostam da foto que tiro deles. Ontem, Pedro colocou uma foto que tirei dele como perfil do Instagram. O Lipe, também, tem uma foto de minha autoria no perfil do WhatsApp. Transbordo, e como maré, o amor bate e volta para mim. Cinco da manhã. Ainda estou escrevendo.
Sabe quanto tempo eu demorei pra assumir essa palavra, "artístico", pra se referir ao que eu gosto de fazer? Mesmo quando eu estou conversando com alguém, parece que escapa uma mania de querer apelar à imagem. Será que vem de uma criação em hipertexto? Vamos fichar esse pensamento por ora. Salvar em um .docx de fácil acesso, para outra madrugada. Outra sessão de pensamento, de mitologizar o que se vive -- uma coisa que eu e Arthur temos em comum.
Falando de Arthur: semana passada, ele finalmente -- depois de um curto aviso, e um curtíssimo período de transição -- se mudou com o Pedro e a Sara. Estou morando sozinho pela primeira vez em algum tempo. De início, dado o curto aviso [e, sendo sincero, Arthur, meu dia já não tava muito bom pra início de conversa], não consegui evitar pensar em muitas coisas ruins. Sobre o Arthur, sobre a nossa amizade, sobre mim.* E isso machucou muito, porque já andava meio preocupado com o afeto que parecia não fluir mais entre nós dois. Sou um poço de amor, mas, às vezes, parece que o poço está seco. Durante a noite, me sinto bem daquele jeito, mesmo, como um poço transbordando. Um sentimento de peito inchado, parece que o coração pena em bombear tanto afeto. Foi a Mitski quem disse, "sinto este rio correndo pelas minhas veias / sem ter mais aonde ir, ele circula". Logo depois do aviso do Arthur, me senti seco.
Uma hora da tarde. Consegui algum sono e, desde aquele asterisco ali em cima, escrevo à luz do sol, que traz clareza em tudo, escalda as paranoias noturnas. Eu estava tão enamorado com a ideia que ia ser abandonado por um grande amigo, criando uma mitologia de rancor, de traição, que era eu quem começava a abandonar essa longa amizade. Mas aí veio o sol, veio a clareza. Quão egoísta, percebi, assumir tantas coisas sobre uma pessoa que estimei [e ainda estimo] há tanto tempo. Tive que sentar e ter uma conversa sincera (por si só, grande sinal de afeto) com Arthur para entender, finalmente, que ele se mudar com outras pessoas também foi um gesto de imenso amor. Dele para consigo mesmo, que não aguentava mais morar neste apartamento sujo, infestado de cupins (e eu também não); para seus amigos, que também são amigos meus e também compartilham do carinho que tenho pelo Arthur; e, principalmente, um gesto de amor dele para mim. Morar com outro é desgastante, uma presença forçada que é, de início, uma bela novidade, mas sorrateiramente tomada por uma náusea, um cansaço de ver o rosto do outro todos os dias, sem exceção. Compartilhar uma casa com alguém é, claro, um ato de amor, porque tomar essa empreitada é declarar que seu amor pelo outro é maior que qualquer ferrugem que os dias possam macular. Da mesma maneira, saber retirar-se, reconhecer o dano e abrir distância física para que permaneça a proximidade afetiva, é outro enorme ato de amor. Porque amor se cultiva, se trata, é cuidado. E perceber isso até quebra um pouco toda a metáfora do poço: fluxo e estoque, dizem os economistas, são valores muito diferentes. E eu sempre concordei com a máxima que economia não passa de astrologia de homens cis-héteros. Me parece mais sensato deixar o amor com os astrólogos, o que talvez explique alguma coisa: Vênus estava em retrógrado até anteontem.
Ainda assim, lavados os panos sujos, posta a toalha limpa sobre a mesa, me deparo com uma certa sobriedade quando chego em casa. Agora, são onze da noite. Chego em casa e me deparo com uma avassaladora ausência. Desacostumei a encontrar a casa vazia, sem uma luz ligada, som de celular ou de panela no fogão. Tem vezes que eu, chegando na rua do condomínio, ainda olho pra janela, esperando ver algum sinal de vida. Um pequeno processo de luto, pode-se dizer. Estou levando algum tempo para me adaptar a fazer as tarefas do meu dia assim, nessa fantasmagoria que, por gracinha do destino, lembra muito o célebre meme do "liberdade ou solidão?". De momento, solidão. Contudo, mesmo solo, quando faço minha toca debaixo das cobertas, ainda está lá: quase escondido, aquele sentimento de amor, mais largo que a vida. Ameaça derramar pelos poros, pingar dos meus ouvidos. Como explicar isso? Sentir dentro de si tanto amor e, ao mesmo tempo, sentir-se só, desabrigado? Períodos de mudança são estranhos assim. Tenho um TCC para escrever, um novo estágio onde trabalhar, voltei a frequentar a academia e estou buscando outro lugar para morar. Um passo de cada vez. Acorda. Respira. Tudo tem seu tempo. E tenho todo o tempo do mundo para praticar o auto-amor, coisa que sempre acabo deixando para escanteio.
Chegar em casa era, sim, deparar-se com o nada. E até agora luto contra ele, para que não nadifique o resto que tenho. Isso é outra coisa que Arthur me ensinou: o nada nadifica. Lembro do seu entusiasmo quando me explicava esse detalhe da metafísica heideggeriana. Não tem como evitar essas memórias, porque o afeto, quando se movimenta, move tudo com ele. Cava novos caminhos, rearranja os interiores, arromba portas e deixa atrás um novo espaço, onde mais afeto pode passar. A egrégia pilastra do carinho [o Zé (MatarPardais) apagou a conta de novo]. Essa fantologia do amor é que me permite seguir em frente, já que a ausência mostra as linhas de algo que já esteve lá. Lembro não só do Arthur, mas de tantos outros amigos queridos, com quem passei a entrar em contato frequentemente estes últimos dias. Não cabe a mim sentir-se só, quando nunca estive tão rodeado de pessoas que me agraciam com seu companheirismo precioso. Neste sentido, gozo de um lambuzo prazeroso de afeto, uma esporrada que há tempos não sentia. Gosto muito dos meus amigos. Se estão lendo isso, um beijo! Eu provavelmente pensei em você enquanto escrevia isso. Espero que consiga ter passado em escrita o quão importante você é pra mim, cujo carinho faz meu coração latejar com virilidade.
Três da manhã. Você acha que eu estou me divertindo, usando esses termos sugestivos pra falar de amor? Pois estou, e muito. A gente ri e ri, mas só Deus sabe como tá a mente do palhaço. Deus e você, claro, que está lendo mais uma de minhas exegeses mentais neste site. Aliás, esse jogo de palavras todo me fez refletir, durante as mais de 24 horas que rumino sobre esse texto, que é nesta área, o romântico, o sexual, que consigo explicar essa abundância-e-ausência que ando sentindo. Amor é um termo abrangente demais pra ser tratado de maneira curta. Veja só a envergadura desta egotrip, definitivamente o maior texto que já me propus a publicar aqui. Mas me preocupo, geralmente, a pontuar facetas específicas -- e geralmente trágicas -- deste meu amor em constante ebulição. Confesso que não ando tão melhor ou mais hábil no jogo do desejo do que das últimas vezes que escrevi aqui. Superados os longos suspiros do heartbreak, ainda continuo morno, apesar desse amor, que também é desejo, se juntar em quantias cada vez maiores. Ele exige um escape, uma nova linha de fuga, que me arraste para longe destas águas salobras para algo que seja mais doce ou salgado. Preciso disso, não apenas por tesão, carência ou conformidade, mas porque preciso encontrar mais de quem eu sou. As duas primeiras forças me puxam, a terceira parece não saber onde quer ir. De qualquer maneira, tento não permanecer estacionário. Tenho muita vontade de amar mais, dessas maneiras que parecem até paradoxais: uma vontade de seguir o desejo livre, ardente, e também outra que clama pela devoção mútua, as belas correntes douradas. Poucas coisas são verdadeiramente dicotômicas, claro, mas descobrir onde me encontro nesse entremeio é algo que requer prática. Largar-se para o mundo, permitir-se receber este amor. Tenho medo. Fico nervoso, até ansioso. Meus dedos ficam frios, o coração martela. Ainda assim, estou tentando. Porque viver não é preciso; mas navegar o é.
Os textos daqui parecem sempre pontuar um final de ciclo, um arrepio melancólico das piores coisas que senti até então. Em algumas formas, este texto também obedece a regra. Mas, para mim, é evidente que ele é muito mais sobre o novo. Novas amizades, novos horizontes, novos jeitos de fazer arte e, por consequência, novos jeitos de amar. Quero enxergar este artigo como uma ode ao que eu já escrevi, e como tudo sempre esteve recheado desta força destruidora que é amar. Ligue a luz ultravioleta e veja como não apenas este texto, mas todo este site, e toda as fotos que tiro, e tudo o que posto, e tudo que mando, e tudo que eu compartilho, tudo, tudo tudo está manchado de amor, tudo brilha um neon incandescente que parece arder mais do que a própria luz é capaz de refletir. Isso é lindo. Mesmo tendo derramado tanto amor, me sinto insaciável. Minhas pernas ficam bambas, meus joelhos caem ao chão. Uma sede voraz por amar, mais do que antes, mais do que nunca, que me derruba, me curva, me põe deitado. Pelo bem desse mundo, e de tudo nele que tanto amo, quero acreditar que não sou o único que sente assim. Essa é a mensagem final deste texto, que também é ode ao amor que derramam em mim.