vanílico

   Tenho mexido com flores. Bate o vento doce de dama-da-noite, e já quero espetar meu dedo em uma roseira. Quero passar minha língua em uma orquídea branca. Seus arranjos-tantos de botões e aberturas fractais pontilham o meu espaço -- um domo cristalino, firmamento dos tesouros da minha vida -- e formam linhas; intersecções; vetores de querer-ser; ângulos se dobrando com torque infinito, quase primitivo. Afetos,-que-são-como-flechas. A partir destes axiomas, uma ordem cascateia, e miríades-coisas se originam do cruzamento de dois vetores. Função bijetora. Um novo jeito de ver as coisas, novas rachaduras na parede onde Tistu passaria seu dedo verde. Trazem pulsão de vida no cinza. Tudo atravessa, e é atravessado.

   Nasci numa cidade pequena, céu de poucas estrelas, mas também lá sinto esse movimento em direção à flor. Flores podem ser pequenas, também, afinal! Essa pequenez, inclusive, tem uma beleza particular. Uma vista escondida, um suspiro nos cantos do mundo. Minha cidade, uma fortaleza minúscula. Me abaixo perto do chão, pra me aproximar dessa baixa magnitude. É mais fácil do que parece.

   São poucas estrelas, mas o sol é quente como em todo lugar. Até o azul do céu é quente, quente demais pra florescer. É só fora de casa que sinto vinhas que pipocam para fora de minhas cutículas, estendem o meu alcance, disparam em saída, enraízam para dentro. Um serpenteio verde que desce, enrosca na pele; se camufla entre as estrias. Os meristemas da raiz expandem, forçando-se terra adentro. Pura possibilidade, uma pontada no coração -- o peso do mundo, e o peso de tantos outros mundos. Vejo no orvalho uma figura que me lembra você.

   Sinto um pequeno cheiro das damas-da-noite, que insistem em si mesmas no quintal da frente da minha casa. Difícil vê-las (pequenas), fácil cheirá-las pela noite, quando espumam seu odor inconfundivelmente vanílico. Além disso, o cheiro fica todo dentro da cidade. As paredes da pequena fortaleza são feitas de alqueires sobre alqueires de soja e pecuária. Pouco entra, pouco sai. Quando era menino, jurava que a distância toda existia pra me manter aqui dentro. E foi acreditando nisso que fiquei ali por tanto tempo.

   Mas o miasma sereno das flores chama, no longe, uma tempestade furiosa. Enquanto ela não chega pra cobrir tudo, o sol resiste, descendo fogo sobre as suas costas. É no caminho de casa que eu encontro essa cena. O amarelo incandesce, superlativo, uma loucura que coroa o horizonte elísio. Como se estivesse refletida no céu a queimada de Moscou. Umas plantas haviam rastejado-se prédio acima, onde poderiam ver melhor o anúncio neon do fim-do-mundo. Toda a beleza de tudo desmancha em mim que nem onda: me abatendo, me afogando, me puxando da costa de volta pro mar. Meu corpo deixa uma ranhura na areia. Meu sangue, mais denso que a água, talvez me afunde. É mais doce, mais viscoso, dói os olhos quando quero chorar. A fortaleza que me contém, essa eu mesmo ergui. Se continuo andando, é porque quero sair.

   A coroa fosforesce o caminho de casa todo, pontilha com feixes de luz a faixa de pedestre. A pontinha da raiz incha, preparando-se para penetrar uma poça d'água fria. Tudo é possível. Ajusto minhas pernas; minhas pétalas se curvam, sensíveis, rosadas.